Ouvindo o Porrão na Sala Chinesa

Imagine que você está numa sala. Sentado, aguarda saber o motivo de ali estar. Além da porta trancada, apenas uma entrada tipo caixa de correiro há no ambiente. De repente, um cartão é entregue pela “caixa de correio”. Nele, você vê rabiscos que não fazem o menor sentido. Você pensa, então, que são ideogramas chineses. Mas não sabe ler chinês! Olha a sua volta e percebe uma placa em português, logo acima da porta. Nesta placa está escrito: “Consulte o dicionário Chinês-Português”. Você descobre o dicionário atrás da cadeira e nele, escrito em português, lê instruções para procurar a resposta em uma sacola cheia de cartões que também se encontra atrás da cadeira. Seguindo as instruções, você encontra o cartão-resposta e o coloca de volta na “caixa de correiro”. Ok, você libera sua saída da sala, mas quando sai fica a pergunta: por quê você estava na Sala Chinesa? Não, isso não é tortura oriental. Esse paradoxo é na verdade o processo de funcionamento de um computador. Ele entende os símbolos, mas não consegue compreender o significado. Muitas vezes, nossa mente também não encontra o significado de alguns códigos. Um exemplo, que gera muitos comentários aqui no blog, é a música “Em Busca do Porrão”, do novo CD d’O Rappa. De certa forma, poderíamos considerar que a busca pelo Porrão é a busca pelo significado da própria vida. Talvez seja por isso que tanta gente não a compreende. Vale perguntar a si mesmo se não está escutando a música dentro da Sala Chinesa, procurando apenas o símbolo e não o significado.

©A Sala Chinesa é um pensamento do filósofo John Searle, na década de 80. Leia mais sobre o Porrão aqui no blog. Que todos os seres possam se beneficiar.

Em Busca do Porrão

É incrível como tem gente em busca do Porrão. Diariamente vejo nas estatísicas de acesso deste blog um volume alto de cliques no texto que postei sobre o novo CD d’O Rappa. A maioria deles busca a palavra “Porrão”, desejando saber o que significa essa busca cantada pela voz do Falcão, o vocalista da banda. Então, resolvi tentar uma solução, ou pelo menos um significado, que possa trazer idéias para a reflexão da galera. Como disse no post anterior “Santo, hóstia, súplica e outras rappas” (é legal você ler abaixo para ter uma visão de todo o disco), entendo que o Porrão é uma espécie de ideal espiritual do qual toda religião prega. Ou seja, é o Céu do Cristianismo, o Paraíso do Islamismo, o Jardim do Éden do Judaísmo, o Nirvana do Budismo e qualquer Terra Pura descrita nas religiões do mundo. Em essência, a busca de todas elas é a mesma e O’Rappa acaba por criar a sua própria, a do Porrão. E aqui entra outro grande lance da música. Porque os caras não escolheram uma palavra inventada, como parece. Mas sim uma que se auto-explica. Porrão, segundo o dicionário Houaiss, é um pote de barro bojudo, com a boca e o fundo mais estreitos. Mas significa também um indivíduo baixo e atarracado. Brilhante, afinal todo mundo conhece a velha idéia de que o homem veio do barro, não?!… e essa palavra junta as duas coisas. Por outro lado, Porrão é uma palavra que se encaixa bem na cultura POP, pois parece derivada de um gozo sexual (se gostar de papos sobre sexualidade, leia o Blove) ou de um esporro bem dado em alguém, com o intuito de mexer com sua percepção, sua capacidade de ver melhor as coisas da vida. Bom, agora que você já sabe o que significa o Porrão, escute a música e faça a prova dos sete.

©Atendendo a buscas diárias.

◊Sobre a nova música? Leia aqui.

Santo, hóstia, súplica e outras rappas

Alguns grupos musicais, aqui e no mundo, são verdadeiras religiões sociais modernas. Lançam seus álbuns e em poucos dias já estão nas rádios, nos cd’s players e nos mp3 da galera feito milagre. Mas no caso do novo CD d’O Rappa a religiosidade vai além da euforia típica dos fãs. A começar pelo título (7 Vezes), podemos notar o espírito da obra, que utiliza o número da perfeição bíblica e possui uma série de significados cabalísticos. Entretanto, após ouvir pelo menos 7 vezes – é difícil absorver tudo de início – nota-se que praticamente todas as músicas utilizam expressões religiosas nas mais variadas formas, que se escondem lentamente em ideais político-sociais já conhecidos da banda. Para não ficar só na oração sem fundamento, acho legal deixar a reza clara. E a primeira música nem vale, porque o título da canção já diz tudo: Meu Santo Tá Cansado é uma espécie de protesto com confissão… “…já jurei, já jurei… com dedos cruzados, com dedos cruzados… não tô aqui pra ser herói cuzão, pra pagar de otário…”. A segunda trilha é mais sutil. Em Verdade de Feirante, a letra pergunta onde está a verdade daquele que vive “no meio da casa pequena de pau… tá no grito, tá no sol que bate… tá no rito, tá no sol que arde…”. Porém, é na terceira expressão da obra que notamos uma relação diferenciada, com um sentido mais apurado da palavra religiosa inserida no contexto popular d’O Rappa. Hóstia – tema da canção – consegue transmitir a essência da palavra (além do alimento espiritual, hóstia também significa “vítima expiatória”) quando diz… “ah, meu escudo… meu escudo é minha hóstia…” e passa a idéia de um ser que se protege da miséria. Brilhante e confuso a tal ponto que fans da banda questionam na comunidade do Orkut o sentido da letra. Mas se você pensa que acabou, não sabe da missa metade. E para encurtar vou apenas citar música e trecho, deixando para você as conclusões: Meu Mundo é o Barro – “Eu tenho fé… tentei ser crente, mas meu Cristo é diferente, a sombra dele é sem cruz, no meio daquela luz…”. Monstro Invisível – “… vejo a minha história com a sua comunga(r), vejo a história, ela comunga…”. Maria – “…hei de louvar sempre a harmonia, meu coração é pulsação e meu guia, nunca esqueci da minha mão de Maria…”. Súplica Cearense – “Oh! Deus, perdoe este pobre coitado, que de joelhos rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar… Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe, eu acho que a culpa foi desse pobre que nem sabe fazer a oração…”. Respeito Pela Mais Bela – “…independente de onde esteja agora,… traga a esperança, traga ela de volta…”. Vários Holofotes – “…o santo dorme, o santo daime, muita coisa de bom que acontece com a gente…”. Enfim, se você chegou até aqui, talvez busque um propósito, como eu, para tantas relações religiosas no disco desta banda ímpar. E ele existe; bem no meio ou mais precisamente na sexta trilha. Em Busca do Porrão é primorosa. Não apenas pelo balanço e ritmo que agradam muito, mas porque consegue resumir o princípio da existência divina, que está presente em qualquer doutrina espiritual. Por isso, nada mais justo que terminar este artigo com ela, na íntegra: “A busca do Porrão não é de paz ou de abraço,
 de grade, de foice amarelada, não é de cagaço,
 não tem cor, não tem caô, 
nem promessa, nem fita, nem missa,
 a busca do Porrão não é missão, 
é uma sina, 
a busca do Porrão não faz barulho 
e não cobra dívida,
 a busca do Porrão é intenção, o
 abraço consternado do pai,
 no filho pródigo perdoado e a presente felicidade,
 que não começa e nem termina no espaço da paz, 
a fruição do som, do espaço vazio, 
o amor que não dá pitaco, que não dá pio…
 a busca do Porrão não tem fim,
 não tem fim nem finalidade,
 onde é necessária não tem, não tem cidade, 
a busca do Porrão é a beleza, 
nunca perdida da cidade, 
pra além do silêncio, do gozo da mulher
 difícil da cidade, 
do patrão encaixe neura do torturado, 
pralém do trem, do ônibus, do pé inchado,
 do patrão encaixe-neura do torturado,
 folheado, café-milho misturado,
 a busca do Porrão vai além, além do macacão, 
abraço evangélico, evangélico no tição, 
onde ninguém se perde nos dramáticos sete,
 não tem traíra, não tem canivete,
 sem traíra, sem canivete, sem traír canivete,
 o legal encontra o razoável,
 encaixe do neura do torturado,… além do papo mudo repetido,
 além da compreensão,
 além do cabelo reco sem discriminação…
 o Porrão não se respira, 
não se vende, não se aplica,
 o Porrão não se respira,
 o Porrão é pura pica…
 a busca do Porrão não tem fim e não faz barulho…”. É por essas e outras rappas que não se deve rotular o som desses caras.

©Texto publicado no jornal O Local desta semana.

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