Deveria

Os ricos e bem afortunados deveriam ser os mais generosos.

Aqueles que vivem nas metrópoles deveriam ter a mente mais livre.

Os que lutam contra injustiças deveriam ser aqueles que mais aderem a causas.

Quem trabalha duro de sol a pino deveria ganhar mais do que quem propina.

Quem compra muito sem precisar deveria reciclar mais sem recear.

Os que comem em demasiado deveriam ofertar mais aos necessitados.

Quem não divide nem a esperança deveria ser o mais solidário.

Quem tem carro possante deveria dar sempre mais passagem.

E os que têm mais conhecimento deveriam ser os menos arrogantes.

O que se pretende para o futuro deveria ser visto no passado.

O futuro do pretérito deveria ter sido revisto na língua.

A título de decisões mais acertadas que devemos pensar.

©Possam todos os seres se beneficiar.

Enquanto ainda há lucidez


O texto era para começar assim… “enquanto o mundo está senil, mostre que ainda há lucidez. Enquanto explode o inglês, seja agente da sensatez. Somos povo criança, aprendemos como se dança, nunca igual aos britânicos ou à França. Passamos períodos de descrença, economia baixa e desavença, mas nunca perdemos a esperança. Isso é de nascença. É tolo não sentir essa presença. Pueril não ter essência.” Mas mudei todo o sentido, do começo até o desfecho. Pois enquanto ainda há lucidez, use a sensatez para dançar uma valsa. Escute a melodia, fuja da fumaça. Brinque de pega e traça. É só estar em estado de graça. Eita coisa boa, fazer rima de coisa tola. Sentir-se um Zé em Pessoa. Alberto, Caeiro, Ricardo, Reis, Álvaro, Campos; qualquer sobrenome ecoa. E enquanto o mundo está senil, viva você a mil, cante dentro de um funil, tinja tudo de anil. Meu Brasil varonil. É de seu semblante que vejo brotar, a chama boa que incendeia, o carinho que clareia, o desejo que tu me queiras. Enquanto explode o inglês, que venha o butanês. Tiremos a timidez, acabemos com a embriaguez. Chegou a nossa vez!

©Imagem: recorte de “Retrato de Jan Švankmajer” em lápis de cor sobre papel. Que todos os seres possam se beneficiar.

Doença, Envelhecimento e Morte

Quando o príncipe Siddartha saiu de seu palácio pela primeira vez, que fora construído como um verdadeiro paraíso por seu pai, ele viu três coisas que mudaram a sua vida. No meio do povo, conheceu a doença em corpos quase putrefatos, descobriu a velhice que aflora sem pestanejar e desvendou o destino daqueles nascem nessa vida: a morte. Hoje, após uma semana infernal promovida por uma pneumonia atípica, sinto-me ressurgir do mundo dos inválidos com o espírito renovado. O fardo, pela mente que o vive, enfraquece aquilo que mais prezamos. Não foi difícil perder o sentido de compaixão nas horas de dor, nem ignorar que milhares de pessoas morriam em Gaza naqueles mesmos instantes. O sofrimento é um apego do ego, que reduz a dor apenas ao que o “eu” sofre. Foi então que decidi, de coração aberto, mentalizar e orar por todos os seres que estivessem em condição igual ou pior que a minha. Não me importava o que sentia, nem as alucinações febris que me arrematavam de tempos em tempos. Milagrosamente, enquanto o fazia, a dor e as confusões se dissipavam aos ventos. Pude sentir, mesmo que por segundos, o alívio de outras mentes ao redor do planeta se tornando remédio para a minha alma. Não posso negar que a estupidez tenha sido a grande companheira do sofrer. Mas os lampejos de lucidez espiritual transformados em verdadeira compaixão extirparam de mim muito do medo de morrer. E sentado na sala, após dias de cama, finalmente assisti, ainda tossindo, ao “Ensaio sobre a cegueira”, de Saramago. Se a doença é o prenúncio da morte física, não enxergar é o mesmo para a morte espiritual. Estive enfermo, mas não cego. E apenas isso é suficiente para me trazer felicidade temporária e definitiva.

©Que todos os seres possam se libertar.

Robôs, memórias e presente

Olá, leitor. Quando fui convidado pelo meu amigo Guilherme Thies, editor deste jornal, para escrever uma coluna sobre marcas e comunicação, a primeira coisa que pensei foi: será que as pessoas querem mesmo ler sobre isso? Compre isso, experimente aquilo, etc, etc, etc. Que fique claro, sou publicitário! Escrevo conceitos, campanhas de propaganda e promoção todo dia. Mas não sei ao certo se o tema agrada, quando o objetivo é ler uma coluna jornalística. O raciocínio é simples. A comunicação empresarial é desenvolvida com o propósito de fazer as pessoas comprarem seus produtos, ou seja, é “papo de vendedor”. (atenção, nada contra a profissão que, afinal das contas, eu também exerço). E por mais que você ache divertido assistir a um filme publicitário de 30 segundos na TV, não é a mesma coisa que curtir o DVD da sua banda preferida, certo? Pois é, mas existe um lado da comunicação que pode ser muito interessante se você observar com atenção o que está por trás dela. Como um termômetro social, ela sinaliza como lidamos com as coisas do dia-a-dia. Mais que isso, ela expõe a filosofia contemporânea mais atual que existe da humanidade. E, nesse caso, falar sobre marcas ganha um status muito diferente do esforço em vender produtos. É possível, por exemplo, perceber que uma empresa de whisky utiliza a sensibilidade de um robô para mostrar que os executivos estão se robotizando, de tanto trabalhar. A campanha é linda. Um robô em uma biblioteca virtual diz que ele tem mais capacidade de realizar operações do que você, mas não sabe o que é ter sentimentos, esperanças e angústias que resumem o sentido da vida – não vou contar tudo, quem não viu, acesse o youtube.com e pesquise “keep walking”. E isso é verdade. Quando chego no escritório de manhã, dezenas de executivos marcham com destino ao seu posto de batalha. Quase se atropelam no entra e sai do elevador. Ninguém fala bom dia ou sorri. E muito menos sente a presença de outro ser humano, igual a ele, ao seu lado – bom, agora sim, chegamos ao ponto onde desejo estar em todos textos que publicar aqui. Através desta campanha, podemos perceber que a humanidade vive cada vez mais automatizada em processos inúteis. Levantamos da cama sem perceber que ainda estamos sonhando. Andamos nas ruas sem levar em conta que a vida está passando a cada segundo. E voltamos para casa sem o prazer de experimentar o sabor de cada instante. Gilberto Gil, genial como sempre, escreveu a música “cérebro eletrônico” em 1969, prevendo mais do que a simples evolução da tecnologia. Sua letra mistura a sensibilidade de falar da morte, valorizando a vida focada na experiência emocional que só nós, seres humanos, temos – escute a música no site do Gil em www.gilbertogil.com.br. Você também sente isso? Então, responda a si mesmo agora: como você está vivendo a sua vida? Seu cérebro é eletronicamente cego e prático? Ou você também é vivo pra cachorro para saber que o futuro e o passado não são um presente? Acessar memórias é uma função do computador. E desejar tudo lá na frente é apenas projetar um filme no telão. Por isso, pare tudo neste instante e sinta seu coração bater. Respire fundo e solte o ar como se a expiração fosse a coisa mais valiosa do mundo. Pronto. Bem-vindo ao presente! 

©Texto publicado no jornal Grande SP em outubro de 2007.