Abriu uma porta vermelha, velha e descascada pelo tempo. Lá dentro tocava, ao fundo, o clássico “Metamorfose Ambulante”, na voz serena e racional de Zé Ramalho, mixado com o tilintar brega de pedrinhas de plástico colorido da cortina que antevia a sala principal. Viu uma mesa central com apenas duas cadeiras de carvalho; a luz baixa não revelava muito mais do ambiente. Da semi-escuridão surgiu uma senhora de cabelos loiros desbotados, dentro de um vestido longo com os braços gordos de fora. “Oi, posso ajudar?”. Atrás da bela carapuça, um terno com gravata italianos da melhor qualidade, havia um sujeito incrédulo, de mal feitio. Nos seus cinquenta e poucos anos de vida, havia escrito dramas terríveis com a ex-esposa e os filhos, com os três ex-sócios e, se é possível dizer, com os ex-amigos. Nos tempos áureos, seria impossível vê-lo entrar num lugar assim, tão místico. Mas a solidão, muitas vezes nos tranforma em seres menos egoístas, menos estúpidos e céticos. E, hoje, ele havia mudado algo… “Bom, eu não sei muito bem porque estou aqui… eh… queria saber sobre o futuro, porque…”. Não era fácil para ele abrir francamente suas dores. Por isso, a experiente cartomante completou a frase com tranquilidade “…ah, sim, você quer ler seu futuro… vamos lá, sente-se aqui por favor”. Atordoado com pensamentos confusos, o homem apenas se acomodou. Bem diferente do ditador que havia sido, olhou humildemente para a mulher e sentiu confiança no seu vigor espiritual. “Antes de começar, preciso te dizer uma coisa importante…”, exclamou a vidente com o maço de cartas na mão. “Não faço previsões para esta vida, somente para a próxima, tudo bem?”. Instantes de silêncio. “Como assim não faz?”, perguntou o homem. Seu tom de voz já era bem diferente do início. “Eu preciso saber o que será da minha vida agora! Não suporto mais essa situação, esse peso nas minhas costas!”. Sua resposta áspera denotava o desespero que vivia, porém tornava cristalina a sua personalidade cruel. Ele havia resolvido fazer essa consulta de supetão, depois de ter perambulado pelas ruas por mais de doze horas sem parar. Tudo começou com uma visita ao seu médico, que solicitou exames de rotina. E, naquela manhã, havia recebido a notícia fatídica de que não teria mais de um mês de existência. Ele, aquele cara tão respeitado, tão certo de si, tão iludido pela tolice; iria sumir na imensidão. Saiu feito fera, trombou feito cego, xingou feito jegue e, depois de tanto buscar respostas, entrou na casa da cartomante. “É isso mesmo que eu disse, só para a próxima vida. O senhor precisa decidir se quer saber ou não”. Novo intervalo mental, dessa vez o cinquentão pensava como habitualmente… “Maldita videntezinha de merda! Eu sabia que não devia nem ter entrado aqui! Filha da puta, não quer dizer o meu futuro, tudo bem, tudo bem… eu vou…”. Seu pensamento foi interrompido cirurgicamente pela futuróloga… “É importante também saber que tudo o que eu direi a você será esquecido na próxima vida, o que, a princípio, pode ser entendido como pouco útil. Mas se o senhor prestar bem atenção, não o é”. A ira aumentou… “O que ela está dizendo? A desgraçada ainda quer roubar o meu dinheiro? Quer esfolar a minha alma sem dizer nada de útil? Ah, ela vai ver uma coisa…”. Não deu tempo de reagir, a vidente continuou o raciocínio… “Não, caro senhor, não desejo furtar o seu dinheiro, ganho com tanto esmero por falcatruas…”. De repente, ele percebeu o que estava acontecendo. A mulher não dizia, mas escutava tudo o que ele pensava. “…apenas estou lhe dizendo que será importante para sua próxima vida, ficar ciente de algumas coisas”. Então, o bicho explodiu. Seus olhos se encheram de ódio. Levantou-se empurrando a cadeira para o chão e com o dedo em riste, rosnou: “Ok, então, diga logo! Como será a minha vida fudida futura, já que não tenho nem mais um mês nesta?! Desembucha, fala porra!”. Calma e com um sorriso angelical no rosto, ela finalizou suavemente… “Se estiver com essa raiva toda, será infernal. Se for indiferente e arrogante, será uma existência inútil. Mas se você aceitar sua metamorfose com tranquilidade, ela poderá ser bela e ter algum amor verdadeiro. Depende só de você, neste instante, criar sua própria vida. Pois, você não se lembra, mas já está morto.”
©A ser publicado na próxima edição do jornal O Local. Vale uma indicação de leitura, para quem ainda não conhece, “A Metamorfose” de Franz Kafka, além da música citada no texto, “Metamorfose Ambulante” de Raul Seixas. Que todos os seres possam se beneficiar.