De Compor

Tornar-se líquido, incolor.

Depositar o medo e a dor.

Deitar-se com fé e fervor.

Vamos todos decompor.

Das ruínas erguem-se as mudanças.

Das calamidades, restam-se as lembranças.

Do último ser, brotam-se as esperanças.

Um dia voltamos como crianças.

Antes de compor, somos só pó inodor.

Antes do pôr, tudo está no breu gerador.

Antes do ser, tu és apenas sonhador.

Vamos todos recompor.

Cidades inteiras vão desaparecer.

A internet é feita para não ceder.

Na hora h é preciso saber,

Só a realidade básica, devemos reconhecer.

Haverá um dia transformador,

Um instante mágico, se assim for,

Único, pleno e indolor,

Célebre é aquele sem temor.

Falo sem trauma, nem rancor,

Com pena do outro que se for,

Ouvindo com olhos de pavor,

O que é seguro de supor.

Mas não acredite que fácil esse solo,

Nem suponha ingênuo, que és tolo,

É chegada a hora de escolher do bolo,

O sabor que levarás em teu colo.

Antes de decompor até a morte,

Conte com a vida e com a sorte,

Encontre paz e uma digna consorte,

E celebre a compaixão pura, firme e forte.

©Possam todos os seres se beneficiar.

“A vida é muito curta para faltas de esclarecimento.”

Os conflitos que vivemos no nosso dia-a-dia, não são nada mais do que a expressão da nossa mente que será tocada no momento da morte. Deixar de esclarecer os mal-entendidos que vivemos hoje é deixar que o mesmo estado retorne futuramente, no bardo do estado intermediário ou em outra vida. No fundo, estamos bem e felizes, mas é só aparecer o espelho do carma negativo que somos engolfados pela sua força. A mente alerta evita isso, sermos novamente levados pelos vícios e velhos hábitos da mente.

©Que todos os seres possam se beneficiar.

Evidência da Metamorfose

Abriu uma porta vermelha, velha e descascada pelo tempo. Lá dentro tocava, ao fundo, o clássico “Metamorfose Ambulante”, na voz serena e racional de Zé Ramalho, mixado com o tilintar brega de pedrinhas de plástico colorido da cortina que antevia a sala principal. Viu uma mesa central com apenas duas cadeiras de carvalho; a luz baixa não revelava muito mais do ambiente. Da semi-escuridão surgiu uma senhora de cabelos loiros desbotados, dentro de um vestido longo com os braços gordos de fora. “Oi, posso ajudar?”. Atrás da bela carapuça, um terno com gravata italianos da melhor qualidade, havia um sujeito incrédulo, de mal feitio. Nos seus cinquenta e poucos anos de vida, havia escrito dramas terríveis com a ex-esposa e os filhos, com os três ex-sócios e, se é possível dizer, com os ex-amigos. Nos tempos áureos, seria impossível vê-lo entrar num lugar assim, tão místico. Mas a solidão, muitas vezes nos tranforma em seres menos egoístas, menos estúpidos e céticos. E, hoje, ele havia mudado algo… “Bom, eu não sei muito bem porque estou aqui… eh… queria saber sobre o futuro, porque…”. Não era fácil para ele abrir francamente suas dores. Por isso, a experiente cartomante completou a frase com tranquilidade “…ah, sim, você quer ler seu futuro… vamos lá, sente-se aqui por favor”. Atordoado com pensamentos confusos, o homem apenas se acomodou. Bem diferente do ditador que havia sido, olhou humildemente para a mulher e sentiu confiança no seu vigor espiritual. “Antes de começar, preciso te dizer uma coisa importante…”, exclamou a vidente com o maço de cartas na mão. “Não faço previsões para esta vida, somente para a próxima, tudo bem?”. Instantes de silêncio. “Como assim não faz?”, perguntou o homem. Seu tom de voz já era bem diferente do início. “Eu preciso saber o que será da minha vida agora! Não suporto mais essa situação, esse peso nas minhas costas!”. Sua resposta áspera denotava o desespero que vivia, porém tornava cristalina a sua personalidade cruel. Ele havia resolvido fazer essa consulta de supetão, depois de ter perambulado pelas ruas por mais de doze horas sem parar. Tudo começou com uma visita ao seu médico, que solicitou exames de rotina. E, naquela manhã, havia recebido a notícia fatídica de que não teria mais de um mês de existência. Ele, aquele cara tão respeitado, tão certo de si, tão iludido pela tolice; iria sumir na imensidão. Saiu feito fera, trombou feito cego, xingou feito jegue e, depois de tanto buscar respostas, entrou na casa da cartomante. “É isso mesmo que eu disse, só para a próxima vida. O senhor precisa decidir se quer saber ou não”. Novo intervalo mental, dessa vez o cinquentão pensava como habitualmente… “Maldita videntezinha de merda! Eu sabia que não devia nem ter entrado aqui! Filha da puta, não quer dizer o meu futuro, tudo bem, tudo bem… eu vou…”. Seu pensamento foi interrompido cirurgicamente pela futuróloga… “É importante também saber que tudo o que eu direi a você será esquecido na próxima vida, o que, a princípio, pode ser entendido como pouco útil. Mas se o senhor prestar bem atenção, não o é”. A ira aumentou… “O que ela está dizendo? A desgraçada ainda quer roubar o meu dinheiro? Quer esfolar a minha alma sem dizer nada de útil? Ah, ela vai ver uma coisa…”. Não deu tempo de reagir, a vidente continuou o raciocínio… “Não, caro senhor, não desejo furtar o seu dinheiro, ganho com tanto esmero por falcatruas…”. De repente, ele percebeu o que estava acontecendo. A mulher não dizia, mas escutava tudo o que ele pensava. “…apenas estou lhe dizendo que será importante para sua próxima vida, ficar ciente de algumas coisas”. Então, o bicho explodiu. Seus olhos se encheram de ódio. Levantou-se empurrando a cadeira para o chão e com o dedo em riste, rosnou: “Ok, então, diga logo! Como será a minha vida fudida futura, já que não tenho nem mais um mês nesta?! Desembucha, fala porra!”. Calma e com um sorriso angelical no rosto, ela finalizou suavemente… “Se estiver com essa raiva toda, será infernal. Se for indiferente e arrogante, será uma existência inútil. Mas se você aceitar sua metamorfose com tranquilidade, ela poderá ser bela e ter algum amor verdadeiro. Depende só de você, neste instante, criar sua própria vida. Pois, você não se lembra, mas já está morto.

©A ser publicado na próxima edição do jornal O Local. Vale uma indicação de leitura, para quem ainda não conhece, “A Metamorfose” de Franz Kafka, além da música citada no texto, “Metamorfose Ambulante” de Raul Seixas. Que todos os seres possam se beneficiar.

Conto da Despedida

Obscurecido pela luminosidade que era projetada em seu rosto, o sujeito, pálido, não conseguia ver nada além de quadros coloridos com conteúdo que ele mesmo havia criado. Cenas da infância lhe vieram ao pensamento quando viu, num tom de cenoura ralada, a estampa dos seguintes dizeres: Seus Registros. Em sequência quase cronológica, pelo menos era isso que lhe parecia, cada passo seu era mostrado com extrema precisão que só “Ele” era capaz de saber. Os momentos de lazer, os árduos trabalhos focados no crescimento do business e até os desejos libertinosos eram expostos sem reserva, nem fôlego. Enquanto o show visual acontecia, uma voz masculina, forte, séria e marcante, pontuava os assuntos com moralidade e extremo vigor: “Você foi displicente em X% do seu tempo, deixou de apoiar os companheiros em situações cruciais e acessou sites pornográficos em demasia…”. O timbre chegava a audição provocando um desconforto indescritível. Como era angustiante rever o passado assim, tão cruelmente. A velocidade da informação também o anestesiava. Flashes sequênciais em alta velocidade não davam respiro. E a pergunta pelo motivo de tal exposição não acalmava seu espírito nebuloso. Era mortificante! Não se sentia nada obsoleto, pelo contrário, tinha muito ainda para fazer. Mas parecia que estava sendo simplesmente descartado sem pudor, sem que a sua história tivesse valor. Com certeza seria lembrado pelos amigos como um cara de bom feitio, honesto e humoristicamente interessante. Afinal, tinha deixado boas lembranças, seja nas conversas do meio-de-tarde, seja no ardente e inesquecível romance que tinha com a mulher que mais mexeu com sua paixão. “Ah, como foram gostosos aqueles olhares cruzados. Que tesão era sair com ela a noite, depois de um dia estressante, para transar frenéticamente até a madrugada… e depois bebericar juntos um café da manhã no Hotel de costume”. Ela, que permaneceria ainda nesse universo, certamente não esqueceria isso, jamais! Mas não era somente o prazer que era deixado para trás. Milhares de idéias marcadas por ideais de confiança e determinação estavam sendo abandonadas, quem sabe esquecidas para sempre. E o sonho de oferecer ao mundo sua maior contribuição – implementar uma ação social para acabar com a fome mundial – apodrecia como bilhares de sementes que são abandonados em celeiros ao redor do planeta. Que tristeza, anos de esforço terminando assim, sem mais nem menos, de forma súbita. O saldo final, entretanto, não tinha um resultado nítido, nem objetivo. Claro, o que é resultante de tudo que fazemos se não um grande vazio? Existir e não-existir fazem parte do mesmo prato que servimos e provamos. E uma despedida é somente uma transição de grão, de um lugar para outro, experimentado de tempos em tempos. Uma lágrima escorreu pelo seu coração. A projeção se encerrou. Uma luz forte o iluminou. E só restou uma atitude, agradecer tudo o que aprendeu naquela empresa multinacional.

©Corporações, sonhos e despedidas confusas são temas de um dos roteiros mais brilhantes que já vi. “Abre los Ojos”, de Alejandro Amenábar e Mateo Gil, ganhou as telas em 97, e posteriormente viria a se tornar o conhecido filme “Vanilla Sky” (2001). Todas as despedidas são dolorosas, porque são envenenadas pelo desejo. Mas todas podem ser vividas com graça se você aprender mais sobre a impermanência. Que todos os seres possam se beneficiar.

Conto da Viagem

Chegar no escritório depois daquele trânsito infernal era um alívio. Apesar das duras tarefas que teria ao dia, provavelmente até tarde da noite, nada podia ser mais insuportável do que olhar centenas de pessoas nervosas com o estado caótico e nebuloso daquela manhã. Mesmo o estacionamento, quente por causa de tanto monóxido de carbono despejado de forma politicamente incorreta, já era um refresco psicológico. Correu até o elevador, que foi espantosamente preso por uma mão desconhecida. Fato curioso, pois no mundo empresarial só existem robôs marchando em direção ao posto de batalha. Entretanto, por mais que tenha agradecido com verdadeira intenção, o máximo que recebeu em troca foi um balançar de cabeça, quase que afirmando a necessidade de reconhecer a cordialidade espontânea. Tudo bem, a atitude também era muito mais agradável que os espíritos raivosos que lá fora mordiam cada centímetro do asfalto. As portas se abriram e seus passos, ainda frenéticos, encaminharam aquele corpo moribundo ao seu destino oficial: o escritório. Passou pela secretária dizendo um “bom dia!” caloroso e caminhou pelo corredor do ambiente fazendo cumprimentos singelos. Ele era um cara querido, não por todos, mas ainda assim recebia algum retorno dos companheiros de labuta. Finalmente olhou sua mesa, cheia de papéis em preto e branco, além de um computador modernoso, cheio de adesivos de restaurantes fast-food. Não que ele fosse consumidor assíduo de plástico alimentar, mas era justamente o aspecto estético que o agradava. Porque todos os computadores eram iguais? Porque não dar um ar de individualidade àquilo que parecia tão sem personalidade, dentro de um lugar que já o é por natureza? E pensando isso pela milésima vez, colocou a pasta de couro ralado em cima da cadeira. Fazia este gesto sempre. Criticava os mecanicistas, mas tinha o hábito cego de criar rotinas. Fazia isso no caminho – aquele, insuportável, descrito acima – na hora de tomar banho, para abrir uma garrafa de vinho, etc. Mas nesse dia foi surpreendido justamente na hora que iria sentar para iniciar mais um dia rotineiro. Seu braço foi puxado por um sujeito desconhecido que mirou fortemente seus rosto dizendo: “- Olá, você foi premiado!”. “O quê?”, pensou o premiado com um estranheza sensação de frio na barriga. “– Isso mesmo meu amigo, sou de uma empresa de viagem que está fazendo uma promoção na sua empresa e sorteamos uma experiência única, para um lugar que é o paraíso, num momento que você já não suporta mais esse dia-a-dia cruel e sanguinário!”. “Nossa!”, refletiu o famigerado sortudo. “– Mas a boa notícia você ainda não sabe…”, continuou o vendedor nato, “…o senhor nem vai trabalhar hoje!”. “Bom, então…”, tentou continuar o homem, mas foi interrompido novamente, como se já soubesse sobre a dúvida: “– Sim, sim, mas você nem precisa pegar a mala em casa… lá tem tudo o que você precisa, fique tranquilo!”. Nocauteado – essa é a palavra certa –, simplesmente, então, o asbismado deixou todos os seus pertences e pensou, pelo menos, em ligar para seus pais, já com 70 anos de idade, para contar a novidade. Porém, mais uma vez foi impedido com palavras de sedução turística. A verdade é que a sua vida tinha tanto sofrimento, mas tanto sofrimento, que aquilo parecia um sonho, um puro estado de deleite. Assim, aceitou ser levado pelo braço esquerdo sem pestanejar. No dia seguinte, todos os colegas do escritório receberam um cartão com notícias. O amigo havia feito uma linda viagem sem levar nada consigo, sem se despedir de ninguém e sem volta.

©Conto, enquanto estiver vivo. E você também, por isso aproveite! Ofereço a todos aqueles que precisam de uma chacoalhada na vida.